QUE TUDO MAIS VÁ PARA O INFERNO
- Rasura na linha evolutiva da MPB: Novas linguagens e novos falares: a contribuição da Jovem Guarda à poética da música popular brasileira.
Em agosto de 1965 estreou na TV Record de São Paulo o programa “Jovem Guarda”, veiculado aos domingos à tarde, e em novembro do mesmo ano, Roberto Carlos lançou LP com o mesmo título que pode ser considerado um marco daquele movimento. A primeira faixa do disco e que se tornaria uma espécie de hino do jovem guarda é “Quero que vá tudo pro inferno”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos: “De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar se você não vem e eu estou a lhe esperar/Só tenho você no meu pensamento e a tua ausência é todo o meu tormento/Só quero que você me aqueça nesse inverno/ e que tudo mais vá pro inferno” Por trás da aparentemente ingênua letra de canção romântica as metáforas explodem. Menos de dois anos antes desse disco ser lançado, setores conservadores da sociedade brasileira capitaneados pela Igreja Católica saíram às ruas nas marchas “Com Deus pela Pátria e pela Família”. O poder da Igreja católica em seu caráter mais repressivo e conservador oprimia as mentes e os corpos. E no meio disso o refrão explodia “Só quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo o mais vá pro inferno”. Era não apenas uma chamada à desrepressão sexual e ao amor livre de regulamentos e regras, movido pela atração irresistível dos corpos quentes, mas também um imperativo que podia ser entoado por jovens que naquele momento submetiam-se aos regulamentos e opressão das fábricas. Interessante notar que aquele movimento considerado por muitos como alienado e mera cópia da música estrangeira tinha uma mensagem de conteúdo altamente revolucionário, o de mandar tudo pro inferno, romper barreiras, subverter a ordem, emitindo um grito que escapando às grandes elucubrações era captado nas ruas, nas mentes que queriam liberdade. Não apenas uma necessária liberdade política, mas uma imprescindível liberdade cotidiana. Para toda uma tradição crítica, a jovem guarda foi antes de tudo o lugar de músicas açucaradas e ingênuas falando de amor juvenil. No perpassar veloz dos flashs e das imagens interrogamos as ruínas que ficaram e perguntamos se seria essa uma verdade absoluta e acrescentaríamos: até que ponto a história da música popular brasileira não está repleta de canções ingênuas falando de amor e que viraram clássicas e, até que ponto a jovem guarda introduziu um desvio, uma nova forma de ver essa temática amorosa? É esse desvio que vemos, por exemplo, em “Prova de fogo”, música de Roberto e Erasmo Carlos gravada também por Wanderléa que brada que “Essa é uma prova de fogo/Você vai dizer se gosta de mim/Sei que você não é bobo/Porém seu reinado está chegando ao fim”. Ao final, num monólogo, a cantora exclama: “Fale agora ou então... deixe-me ir”, o que reveste sua fala de uma antecipação de liberdade feminina que somente iria se efetivar em verdade, nas décadas seguintes. Na ótica do desvio, a jovem guarda desconstruia e ao mesmo tempo dava continuidade. Não pregava revoluções e ao mesmo tempo revolucionava. Nesse quadro é preciso enfatizar as questões comportamentais que irão apontar para os conflitos de gerações que naquele momento abriam um fosso entre as antigas e novas gerações, entre os modernos e os quadrados, os caretas e os pra frente. Alguns destes comportamentos estão flagrados em diferentes textos da jovem guarda como em “Papo firme”, de Renato Corrêa e Donaldson Gonçalves: “Essa garota é papo firme, é papo firme, é papo firme/Ela é mesmo avançada/E só dirige em disparada/Gosta de tudo que eu falo/Gosta de gíria e muito embalo/Ela adora uma praia e só anda de mini-saia/Está por dentro de tudo e só namora se o cara é cabeludo/Se alguém diz que ela está errada ela dá bronca, fica zangada/manda tudo pro inferno/E diz que hoje isso é moderno” Note-se a garota que se veste na última moda que enfatiza as curvas do corpo feminino, fala gíria, dirige e, contrariamente a tão propalada alienação dos roqueiros, está por dentro de tudo e num arroubo de libertação feminina manda tudo pro inferno marcando uma posição de independência. Evidentemente, essa garota papo-firme é bem diferente das mulheres da geração de sua mãe e tias, submissas a seus maridos e fora do mercado de trabalho. E a música enfatiza essa transformação, cantada nos bailes, ouvida nos rádios, compartilhada entre pares da mesma geração. Na jovem guarda várias são as composições que se referem ao automóvel, incorporado como um novo dado poético. Enquanto a música romântica anterior recorria a imagens freqüentes como, por exemplo, à lua, a jovem guarda vai recorrer aos símbolos e valores de uma urbanidade que se acelera em direção ao grau de megalópole. O namoro, o flerte, a paquera vão estar entrecortados pela velocidade automobilística. Em um dos mais belos poemas de “As flores do mal” Baudelaire fala de uma mulher que passa: “Uma mulher passou, com sua mão suntuosa/Erguendo e sacudindo a barra do vestido (...)Não mais hei de te ver senão na eternidade? Vemos aqui uma paixão que é despertada no poeta mas que se perde no burburinho da multidão remetendo a possibilidade do encontro para a eternidade. Já em “Ar de moço bom”, de Niquinho e Othon Russo, do já referido disco “Roberto Carlos” vemos: “Você passou por mim/Sem dar-me atenção/Mas logo percebi/Que para mim seria o fim da solidão/O carro acelerei/Depressa a alcancei/Dizendo logo: -Alô/eu arrisquei/Com ar de moço bom:Você está tão só/Sozinho eu estou/Que tal ir por aí passear/Sem nada comentar/no carro ela entrou/E com o seu pezinho/Bem depressa acelerou” Em novas possibilidades poéticas a eternidade está substituída pela fugacidade do presente, do aqui e agora que é conquistado pelo acelerar do automóvel que permitia a rápida movimentação dos olhares e dos corpos e sua aproximação veloz. Esses novos lances e nuances da poética da jovem guarda vão espocar em diferentes canções como em “Alguém na multidão”, de Rossini Pinto, cantada pelos Golden Boys que aventa a possibilidade do encontro amoroso nas ruas entupigaitadas, pois “Há um alguém na multidão/Que vai lhe adorar...”. Ao mesmo tempo, reflete a crescente solidão urbana e a despersonalização dos seres num ambiente cada vez mais entupido de gente, mas onde a comunicação se torna mais e mais difícil. Novos símbolos poéticos, novos ritmos que se aceleram com a pulsação das guitarras rompendo os padrões e ultrapassando as convenções, estabelecendo novos códigos. A influência da jovem guarda na chamada “música romântica” no Brasil vai bem além do fim específico do movimento que se esgota quando o programa de televisão acaba, porém suas reverberações podem ser ouvidas em dois estilos musicais que incorporaram sons e signos derivados da jovem guarda: o brega e o sertanejo que incorporaram as guitarras e a poética dando novos rumos para a musica romântica no Brasil.
Paulo Luna
Enviado por Paulo Luna em 22/10/2007
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