Paulo Luna

A palavra é traiçoeira, engana o insano e o são. Similar faca a palavra rufa.

Textos

Fenômeno esquecido da época romântica da música popular: a Jazz Espia Só
A música popular brasileira nos dias de hoje é um verdadeiro fenômeno econômico e midiático e muitos artistas passeiam constantemente pelas páginas de jornais e revistas e são apreciados nas telas das TVs. Biografias e teses acadêmicas são escritas relatando e explicando a música popular. Shows são realizados em praias e estádios de futebol e atraem milhares e milhares de pessoas. Mesmo assim, a música popular brasileira ainda continua possuindo em sua rica e variada história inúmeros episódios e músicos pouco conhecidos do grande público.
A música do Rio Grande do Sul, por exemplo, é em grande parte desconhecida para o grande público do resto do país. Alguns nomes como Lupicínio Rodrigues, Alcides Gonçalves, Caco Velho, Barbosa Lessa, Paixão Cortes, Pedro Raimundo, que mesmo sendo catarinense apresentava-se como gaúcho típico, Elis Regina, Kleiton e Kledir, e Borghetinho tornaram-se conhecidos nacionalmente. A partir das últimas décadas do século XX e começo do século XXI firmou-se como sucesso de público e comercial a chamada música regionalista seguindo as trilhas abertas pelos CTGs – Centros de Tradição Gaúcha.
Mas a riqueza da música gaúcha é imensa e desconhecida do grande público. Voltando no tempo, ao começo do século XX, podemos ver que a cidade de Porto Alegre possuía uma intensa e movimentada vida noturna que se reunia em torno de clubes e cabarés como o Cabaret Boulevard, o Cabaret Ibá, o Primavera, o Moulin Rouge, o Palácio das Águias, o Dancing Oriental e muitos outros nos quais se revezavam conjuntos e orquestras como o Noé Guedes e seu conjunto, a Jazz do Joca, a orquestra Concórdia, Paulo Coelho e sua orquestra, a Jazz Futurista, Marino dos Santos e sua orquestra e muitas outras. Uma delas era a Jazz Espia Só. Criada na cidade de Porto Alegre em 1923 pelo flautista Albino Rosa. Inicialmente o grupo se chamava Regional Espia Só e tinha a seguinte formação: Albino Rosa, direção musical e flauta; Binga, 1º violão de seis cordas; Marino dos Santos, cavaquinho e bandola, que é uma espécie de bandolim; Paulino Mathias, 2º violão; Veridiano Farias, violino; Severo, ganzá, e Herald Alves, caixa clara. O nome do grupo surgiu a partir de uma música carnavalesca sucesso no Rio de Janeiro na época e que acabou dando ensejo ao surgimento do ditado popular “Espia só”. A idéia de formar o grupo surgiu quando Albino Rosa convidou alguns amigos que tocavam juntos após a jornada de trabalho para formarem um conjunto musical. Até 1926, foi chamado de Regional Espia Só. Nesse período o grupo apresentou-se em ensaios de sociedades carnavalescas para que os cordões pudessem aprender as músicas que se seriam cantadas durante o carnaval. Além disso, o grupo realizava de três a quatro serestas por semana. Naquela época, as serestas eram proibidas pela polícia que quando apanhava um grupo tocando geralmente prendia os músicos. Para a realização das serestas normalmente os músicos se reuniam de surpresa na casa de um amigo. Uma grande mudança no Regional Espia ocorreu em  1926, quando a cidade de Porto Alegre recebeu a visita do afamado conjunto Oito Batutas dirigido por Pixinguinha, que fizera grande sucesso em Paris quatro anos antes e que recebera da Companhia Cervejaria Brahma o convite para tocar durante vinte dias na Exposição do Parque Menino de Deus. As mudanças provocadas pela visita dos Oito Batutas à cidade começaram na mudança do nome do grupo que de Regional passou a se chamar Jazz Espia Só. Além disso, a partir de informações obtidas junto à Pixinguinha sobre casas musicais no Rio de Janeiro que vendiam arranjos e partituras para conjuntos de jazz, Albino Rosa encomendou à amigos que trabalhavam na Companhia Costeira de Navegação, que fazia a ligação entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre, partituras de música popular. Também houve troca de instrumentos: Albino Rosa passou a tocar sax alto e flauta; Marino dos Santos, sax alto e soprano; João Luiz, pistão; Oswaldino Peixoto, trombone de pisto, que mais tarde ficaria conhecido como trombone de vara; Heraldo Alves, na bateria, instrumento até então desconhecido dos músicos brasileiros; Severiano de Souza, baixo-tuba; Armindo Alves, banjo; Luiz Alves, conhecido como Camaleão, no ritmo, e Leopoldo de Carvalho no vocal, e que na época, sem microfone improvisava a ampliação da voz utilizando um megafone feito de lata, mas que servia para a ampliação da voz naqueles tempos menos ruidosos. Com essas modificação iniciou-se a época áurea da Jazz Espia Só. Passaram a receber diversos convites para tocar em clubes existentes na época na cidade de Porto Alegre. Tocavam na Sociedade Germânia, na Sociedade Satelista, na Sociedade Philosofia e na Sociedade Rui Barbosa, além de se apresentarem no Clube Caixeiral e no Clube do Comércio. O sucesso do grupo era tal que mesmo composto por vários músicos negros foi aceito pelo elitista e racista Clube Germânia que não admitia negros em seu interior. Nesse aspecto a Jazz Espia Só deve ser incluída no grupo dos artistas que na década de 1920 lutaram para furar os bloqueios existentes quanto à participação do negro na sociedade brasileira.
A Jazz espia Só tocava ainda na Sociedade As Margaridas com tinha entrada paga. Em suas apresentações tocavam choros, polcas, valsas, havaneiras, tangos, schottich, marchas e também o charleston, ritmo da moda nos anos 1920. No período pré-carnavalesco o grupo se apresentava em diversos clubes e sociedades tocando as marchas que seriam sucesso no carnaval para que o povo aprendesse a cantar. Enquanto tocava eram fixados cartazes feitos com cartolina nas paredes com as letras das músicas. O conjunto também se apresentava em festivais beneficentes muito comuns na época, nos quais além da música havia canto, declamação e sketchs teatrais. Em suas apresentações possuíam dois figurinos: o smoking para as apresentações de gala, e o esporte para outras ocasiões quando os componentes vestiam casacos azul-marinho com botões de madrepérola, lenço no bolso do paletó e gravata borboleta. Ao longo do tempo o grupo sofreu alteração com a entrada de Paulino Mahias no sax alto, tenor e violão; que substituiu Marino dos Santos. Em 1932, Albino Rosa recebeu o convite de um empresário para realizar uma turnê pelo Brasil. Alguns músicos resolveram não arriscar e desistiram. Albino Rosa acrescentou outros músicos além de duas jovens cantoras e um sapateador cubano. Fizeram apresentações em algumas cidades do Rio Grande do Sul e em Santa Catarina onde descobriram que o empresário aplicara um golpe fugindo com o dinheiro. Com isso o grupo se desfez. Albino Rosa, Paulino Mathias e o sapateador cubano, feito um grupo mambembe ainda prosseguiram na viagem e tocaram na zona portuária de Santos e numa Rádio paulista antes de seguir para o Rio de Janeiro onde receberam convite para atuar nos vapores da companhia costeira até Belém do Pará. Ao que consta ganhavam apenas o suficiente para se manter e com isso conheceram o Brasil quase todo. Na década de 1980, quando Albino Rosa já falecera em 1982, e Paulino Mathias em 1977, alguns remanescente do grupo se reuniam para relembrar os velhos tempos de glória da Jazz Espia Só, que, apesar do sucesso alcançado na cidade de Porto Alegre entre os anos de 1923 e 1932, não deixou nenhum registro fonográfico. Mas ficou na desbotada memória musical brasileira a lenda da Jazz Espia Só, que com músicos negros tocando com graça e malemolência venceram o racismo de clubes elitistas como o Clube Germânia que acabou abrindo suas portas para receber os músicos negros da Jazz espia Só.
Paulo Luna
Enviado por Paulo Luna em 30/10/2011


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