Paulo Luna

A palavra é traiçoeira, engana o insano e o são. Similar faca a palavra rufa.

Textos

Raul Seixas: Vinte anos de (re) nascimento.
Quando de seu suicídio, em 1954, Getúlio Vargas deixou uma “carta testamento” na qual se lê a frase famosa “Saio da vida para entrar na História”. Pois bem, o suicídio do presidente da República que foi chamado de “Pai dos pobres” se deu no mês de agosto daquele ano. E foi também em agosto, há precisos 20 anos atrás também num mês de agosto, que a música popular brasileira perdeu um de seus maiores gênios, o compositor e cantor Raul Seixas.
Verifica-se que em sua trajetória musical o músico baiano fez um percurso que em muito lembra os desígnios assinalados na famosa frase de Getúlio Vargas, isso porque, quando de sua morte, ele se encontrava se não no ostracismo, pelo menos bastante ignorado pela mídia, além de viver momentos conturbados em sua vida pessoal, inclusive, amargando os problemas de saúde que acarretariam sua morte prematura. Artisticamente falando, quando de sua morte, Raul enfrentava tempos difíceis, agravados por sua personalidade e jeito irascível e de difícil trato por parte daqueles que desejavam artistas dóceis.
Depois de todo o sucesso que obtivera em especial na década de 1970, Raul ficaria meio marginalizado nos anos 1980, em especial quando do chamado “rock Brasil”, no qual, novas bandas aportaram no rock nacional e o velho bardo passou a gravar de forma esporádica e foi dado por muitos como acabado. Gravou poucos discos nos anos 1980, embora  dois dos últimos três que lançou, “Uha-bap-lu-bap-lah-béin-bum!”, de 1987, e “Panela do diabo”, este com Marcelo Nova, de 1989, possam ser colocados entre os melhores de sua fecunda lavra.
Se naqueles últimos tempos de vida não lhe era dado o devido reconhecimento, havendo muitas loas para cantores e bandas que acabariam mais passageiras do que supunha a mídia vã e sua filosofia de sucesso fácil, o tempo acabaria por colocar as coisas no seu devido lugar e em pouco tempo depois de sua morte física, Raul acabaria por penetrar na esfera da imortalidade, pois como ele mesmo afirmou na música “Senhora Dona Persona”:
“Os homens passam e as músicas ficam”.
Sua música e sua figura acabariam se tornando alvo de um verdadeiro culto que inclusive perturbaria a uns e outros incomodados com o freqüente refrão dos pedidos para “tocar Raul”, o que mostra a vitalidade de sua música e de sua poética que vão bem mais além do trivial que desfila na moda.
Aliás, Raul sempre flertou com a História em suas músicas com pelo três nas quais faz citações sobre ela: a emblemática “Eu nasci há dez mil anos atrás”, “Al Capone” e “Cawboy fora da lei”. Na primeira temos um desfile de acontecimentos e personalidades históricas numa composição que ilustra bem aquela fase esotérica de Raul Seixas.
“Eu vi Cristo ser crucificado
O amor nascer e ser assassinado
Eu vi as bruxas pegando fogo
Pra pagarem seus pecado.”

Algo semelhante ocorre com “Al Capone”, que depois de citar figuras históricas emblemáticas como o próprio gangster que dá título à música, Jesus Cristo, o cantor Frank Sinatra, o imperador romano Júlio César e outros, termina com a afirmação:
“Vocês precisam acreditar em mim
eu sou astrólogo
eu sou astrólogo
e conheço a História do princípio ao fim”.
Nessa música ele veste caracteristicamente o uniforme do talvez seu super herói predileto, um misto de profeta, guru, sábio e astrólogo. Finalmente, em “Cowboy fora da lei” ele já afirma:
“Eu não sou besta pra tirar onde de herói
Sou vacinado, sou cowboy
Cowboy fora da lei
Durango Kid só existe no gibi
E quem quiser que fique aqui
Entrar pra História é com vocês”
Nessa última canção ele já aparece como que dando adeus às perspectivas de entrar para a História ou de conhecê-la profundamente embora intuitivamente pareça anunciar o contrário, sua definitiva consagração pela eternidade histórica, a qual sabemos é relativamente ambígua e nunca definitiva. O certo, no entanto, é que a obra de Raul Seixas, vinte anos depois de sua morte, se encontra mais viva do que nunca, e tal fenômeno é mais interessante ainda se notarmos que não houve por parte da grande mídia nenhum esforço maior para que isso ocorresse. A imortalidade alcançada por Raul Seixas foi fruto pura e simplesmente de sua obra e da inserção que ela possui em amplas camadas da população uma vez que a admiração por ele vai desde roqueiros veteranos, a estudantes universitários, passando por trabalhadores e donas de casas comuns. Não é raro ouvir músicas dele sendo tocadas na Central do Brasil, grande estação ferroviária do Rio de Janeiro e ponto de entroncamento e deslocamento de grandes massas populacionais.
Não é demais lembrar que recentemente mais de uma dupla sertaneja contribuiu para alimentar a fama de Raul ao gravar “Medo da chuva” uma de suas mais belas canções e que ao mesmo tempo reúne seu lado mais profético e místico e seu lado mais romântico e brega:
“Eu perdi o meu medo o meu medo da chuva
Pois a chuva voltando pra terra
Pras coisas do ar
Aprendi o segredo o segredo da vida
Vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”
Esse Raul romântico e profeta é que faz com que ele seja tão admirado popularmente, pois ele na verdade foi um dos primeiros a fazer a fusão do rock via jovem guarda com um cantar ao mesmo tempo romântico, irônico e debochado que desembocaria na chamada música brega. Ele também foi aquele que melhor resultado obteve unindo a música nordestina com o rock and roll numa fusão que ficaria conhecida com baioque, mistura de baião com rock que infelizmente teria poucos seguidores e cujo crédito precursor quase que não lhe é dado.
Mas esses créditos dados ou não pouco importam. O que importa mesmo, e essa é na verdade a maior glória para um artista popular, é a perpetuação de sua obra no seio do povo pois essa é a única maneira verdadeira de perpetuação de uma obra artística. Na voracidade da cultura de massa que sempre está procurando um novo sucesso para suceder aquele que mal acaba de passar, é sempre difícil a tarefa da perpetuação da memória. O presente permanente vai levando de roldão o passado e o futuro, sendo o esquecimento a obra mais bem acabada que se tem para apresentar. E assim, a forma como alguns artistas permanecem na memória popular é um fenômeno que ainda não encontrou a devida explicação. Se é que existe uma única explicação. Melhor seria dizer que existe um conjunto de fatores que fazem com que determinados artistas e suas obras obtenham tal relevo que sobrevive independentemente de que haja oficializações em torno de suas figuras e respectivas obras ou não.
Raul é e sempre foi um tipo altamente enigmático. Quase um personagem ficcional. E a maior parte de suas composições se insere num universo temático bem mais amplo do que o normal. Suas indagações a cerca da vida, da morte e do destino humano nessa sociedade de consumo permanecem atuais e podem perfeitamente ser ouvidas por qualquer jovem que se indague sobre a vida e a sociedade. Da mesma maneira suas lições musicais em termos de rock continuam à frente de seu tempo e possuem aprendizados a serem considerados.
Sua figura, mistura de roqueiro e cantador nordestino segue sendo, e cada vez mais, um enigma que encanta e chama a atenção, ainda mais, nesses tempos de comportamentos tão vazios e pasteurizados.  E nisso se resume, o que não é pouco, a sua genialidade, que é o apontar para o horizonte, não com uma resposta, mas com indagações:
“Nós temos que criar um mundo novo. Ò gente!
Eu estou perguntando a vocês, cabe a vocês achar essa resposta.
Se aceitar a verdade de outrem não será sua resposta.”
Essas são palavras de Raul que não viraram canção, mas são afirmações que estavam permanentemente em suas canções. A indagação, o chamado para a busca de um mundo mais novo, mais alegre e menos triste. E que existe além da curva do futuro. Um mundo onde a arte e a poesia possam ser mais importantes do que as cifras e os cifrões, onde seres livres possam amar e criar livremente.
Paulo Luna
Enviado por Paulo Luna em 31/07/2009
Alterado em 19/08/2009


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