Paulo Luna

A palavra é traiçoeira, engana o insano e o são. Similar faca a palavra rufa.

Textos

A questão das parcerias na música popular
A música popular é tema de permanente debate entre os críticos e os apaixonados por ela. Por mais que os estudos sobre ela tenham avançado bastante nos últimos tempos, algumas questões permanecem acalorando debates sem que conclusões definitivas possam ser tiradas. Um desses debates é sobre a questão da autoria de algumas músicas e também sobre a real participação de alguns autores na autoria de certas obras.
A questão é antiga e possui alguns ícones ilustrativos. O primeiro deles, não necessariamente por ordem cronológica, é Catulo da Paixão Cearense, poeta maranhense que se consagrou como compositor e também fez parte de várias polêmicas por colocar letra em melodias já existentes, modificando-lhes o título como foi o caso da canção “Rasga coração”, feita a partir da melodia do xote “Iara”, de Anacleto de Medeiros. Em 1913 e 1914, duas novas polêmicas, dessa vez com João Pernambuco, por conta da autoria das músicas “Caboca de Caxangá” e “Luar do sertão”, que foram compostas a partir de temas folclóricos mostrados a Catulo por João Pernambuco, que teve, no entanto seu nome omitido na autoria das composições o que levou o caso à barra dos tribunais, com a justiça dando ganho de causa a João Pernambuco, em especial no caso de “Luar do sertão”, que passou aos registros como de autoria dos dois.
Por essa mesma época, um compositor que enfrentou problemas por questões autorais foi o cançonetista e palhaço de circo Eduardo das Neves que fazia muito sucesso quando da chegada do sistema de gravações ao Brasil em 1902, e que, logo descobriu que muitas de suas obras estavam sendo gravadas em discos como se fossem obras anônimas, o que fez com que reclamasse com Fred Figner, proprietário da Casa Edson, que acabou por contratá-lo para que cantasse ele mesmo suas composições.
Outro caso famoso de disputa pela autoria de uma composição, e que praticamente atravessou todo século XX, foi o da composição consagrada como primeiro samba gravado, “Pelo telefone”, cuja autoria oficial ficou registrada para Donga e Mauro de Almeida, mas, cuja autoria seria, na verdade, coletiva, tendo, possivelmente, surgido nas rodas de samba na casa de Tia Ciata, da qual participavam, ainda, nomes como Hilário Jovino, Mestre Germano e João da Mata, entre outros, cabendo a Donga a primazia do registro da obra em seu nome, o que acabou ficando como documento histórico, aceito como comprovação final.
Outro participante dessa roda de samba foi o compositor Sinhô que acabaria também envolvido em polêmicas em torno da autoria de sambas, sendo acusado de plágio por Hilário Jovino e também por Heitor dos Prazeres, que o chamava de “Rei dos meus sambas”, devido ao caso da autoria dos sambas “Ora vejam só" e "Cassino Maxixe", reivindicados por Sinhô como sendo apenas dele, que costumava ainda dizer a famosa frase: "Samba é como passarinho: é de quem pegar...".
De qualquer modo, era mesmo difícil estabelecer, de forma precisa, a autoria de músicas, numa época em o direito autoral ainda engatinhava e as gravações de discos mal chegavam aos trinta anos. O certo mesmo é que casos assim não deveriam ser poucos, e, certamente, muitos ficarão obscuros para todo o sempre, a menos que se descubra alguma maneira de se voltar no tempo, pois não existem documentos que possam comprovar as verdades, ficando assim quase tudo no âmbito da suposição e do disse me disse, sempre com versões de terceiros.
Evidentemente, essa questão da autoria não terminou naquela época, ao contrário, seguiu existindo pela história da música popular a fora. Esses casos, no entanto, foram se tornando mais raros, a partir da consolidação do mercado da música, exigindo produções mais definidas para as gravações e apresentações nas Rádios a partir do início da década de 1930.
Começa então a se firmar uma nova modalidade de autoria de música, a das parcerias estabelecidas a partir de critérios, na maior parte das vezes, muito mais comerciais do que musicais, não que estes não existissem. O fato é que o contrato comercial criou compositores que certamente nunca o foram.
Uma das mais famosas parcerias da categoria “comercial” foi aquela que reuniu o cantor Francisco Alves e os sambistas Ismael Silva e Nilton Bastos. Em 1927, Ismael Silva estava internado no Hospital da Gamboa e foi visitado por Bide, que lhe levou a proposta de Francisco Alves de comprar seu samba "Me faz carinhos". A partir daí, o grande cantor das Rádios passou a comprar algumas músicas de autoria de Ismael Silva, a maior parte, composta em parceria com Nilton Bastos. Ismael fez um acordo com Francisco Alves, que permitia ao cantor gravar composições suas e constar como autor mediante pagamento prévio. Esse "comércio" de sambas era prática comum nos anos de 1920 e 1930. Além dele, Noel Rosa, Cartola, Nélson Cavaquinho e outros venderam sambas. Há aqueles, que defendem a idéia de que Francisco Alves realmente compunha esses sambas em parceria com Ismael Silva e Nilton Bastos argumentando, por exemplo, com o fato de existirem músicas como “A voz do violão”, nas quais Francisco Alves realmente fez a melodia, o que seria comprovação de sua real participação nas composições como autor e não apenas como comprador e divulgador.
Francisco Alves, além de todo o seu valor inigualável como cantor também firmou parcerias com diferentes autores como foram os casos de Luiz Iglezias, Jorge Faraj, David Nasser e René Bittencourt, todos conhecidos mais como poetas do que melodistas, o que pode servir como comprovação de que o cantor conhecido como o “Rei da Voz” era também um bom melodista.
Porém, uma audição aos sambas assinados em parceria com Ismael Silva e Nilton Bastos mostrará uma determinada homogeneidade rítmica e temática que não está presente em outras produções nas quais Francisco Alves aparece como autor. Seja como for, a parceria de Francisco Alves, Ismael Silva e Nilton Bastos rendeu grandes sambas que foram sucesso na voz de Chico Alves, como “Amor de malandro”, “Me faz carinhos” e outros. Ao comprar esses sambas, Chico Alves não apenas ganhou a fama da autoria, como também ajudou a divulgá-los a partir de suas gravações como o maior cantor popular da época. De certa forma, era um acordo com o qual os verdadeiros compositores concordavam, pois além de lhes render algum dinheiro a título da venda, permitia-lhes ver a produção gravada e divulgada, o que, certamente, ampliava as possibilidades de outras gravações, ou mesmo de outras vendas.
As composições em torno dessas parcerias já entraram mais ou menos no nível do consensual sendo poucos os que duvidam da real intensidade da parceria Francisco Alves, Ismael Silva e Nilton Bastos. Outros casos, no entanto sucumbiram sem que se possa imaginar maneiras de esclarecimento concreto dos caos. Um desses é relatado pelo compositor Raul Sampaio, que ao longo de sua trajetória artística iniciada no começo da década de 1950, viu e ouviu diversos casos de composições que surgiram com um autor e terminaram com parcerias inesperadas ou mesmo que trocaram simplesmente de autor. Muitos desses casos nem mesmo ganharam a menor notoriedade, ficando, portanto, totalmente obscurecidos. Um dessas autorias pouco, ou quase nada comentadas, é o da marcha “Cidade maravilhosa”, que se tornou mais tarde hino da cidade do Rio de Janeiro. A composição consta como de autoria de André Filho tanto na letra como na música.
Segundo Raul Sampaio, na realidade, a letra dessa composição seria de Noel Rosa que, por motivos ignorados, não reivindicara a autoria de uma composição, que afinal de contas, somente se consagraria ao longo do tempo e não no momento imediato de seu lançamento. Certa feita ao indagar ao compositor Roberto Martins sobre a questão, Raul Sampaio ouviu do autor de “Beija-me” a seguinte afirmação: “Oh Raul, você não sabe disso não? Todo mundo no meio sabe disso, que a letra de “Cidade maravilhosa” era do Noel Rosa, rapaz”.
A fase mais agressiva das parcerias comerciais de músicas populares ao que parece começou com Milton de Oliveira. Segundo relato do escritor e compositor Nestor de Holanda Cavalcanti:

“Foi Milton de Oliveira o primeiro caititu. Depois de assinar “És louca”, com Djalma Esteves, em 1934, “Não tenho lágrimas”, com Max Bulhões, e “Já mandei você embora”, com Sílvio Pinto, transformou-se em parceiro oficial de Haroldo Lobo, em 1937, a quem convidou para padrinho de um de seus filhos. Constava que ele nada fazia nas músicas em que figurava como autor. Inclusive alguns de seus parceiros afirmavam isso. E o próprio Haroldo Lobo jamais desmentiu...
Milton iniciou o processo de pagar a pistonistas e trombonistas de sujos, na Avenida, para tocar determinadas músicas. É a ele atribuída a autoria dos métodos de subornar chefes de orquestras, em bailes e em batalhas de confete, e os discotecários de estações de rádio. Quando levava disco à emissora, era sabido que inutilizava a face em que não estava gravada composição sua.” (Nestor de Holanda Cavalcanti em seu livro “Memórias do café Nice – Subterrâneos da música popular e da vida boêmia do Rio de Janeiro – pág. 56)

Outros que se enquadravam nessa perspectiva, nas décadas de 1940 e 1950, embora talvez com um estilo menos agressivo que o de Milton de Oliveira eram Ari Monteiro, que assinou parcerias com João do Vale, Miguel Lima, Luiz Gonzaga e Gerson Filho, e que teve como principal parceiro Irani de Oliveira, Jorge de Castro que fez parceria com Wilson Batista, e Ribeiro Filho que assinou com Moreira da Silva.
Dois outros autores que acabaram tendo seus nomes envolvidos em questões de compra e venda de músicas e parcerias foram Wilson Batista e Geraldo Pereira, sambistas de reconhecido valor artístico e, certamente, dois dos maiores vendedores de músicas. Ambos deixaram obras de qualidade inquestionável, mas, no entanto, por conta das condições mercadológicas da época em que atuaram, nas décadas de 1940 e 1950, tiveram que se submeter a ver grandes obras serem divulgadas e passadas à História como sendo ou de outros autores ou então, como obras compostas com parceiros que nunca o foram efetivamente enquanto ato de criação, mas sim, apenas enquanto ato comercial, fosse na pura e simples compra da obra, ou então, na parceria para divulgação.
Wilson Batista, em suas mais de 300 composições gravadas, teve Jorge de Castro como parceiro em mais de 80 delas. Eram as tais parcerias para divulgação. Segundo o compositor e pesquisador Bruno Ferreira Gomes, que conviveu com Wilson Batista, “Não é novidade que Wilson foi um grande vendedor de músicas. Vendia a música inteira, vendia a metade, e até a metade dos parceiros, dependendo da necessidade financeira. Só nunca constou que comprasse música, pois foi mestre em fazê-las”.
Da mesma forma, Geraldo Pereira foi vendedor de sambas e parcerias. Entre seus parceiros comerciais constam os nomes de Jorge de Castro e Ari Monteiro dois conhecidos compradores de músicas. Dois sambas famosíssimos, “Acertei no milhar” e “Na subida do morro” são exemplos de composições de Wilson Batista e Geraldo Pereira, envolvidas em negociações, que, felizmente, vieram à tona possibilitando assim os devidos esclarecimentos sobre os verdadeiros autores.
O samba “Acertei no milhar” durante muito tempo ficou conhecido como apenas de autoria de Wilson Batista, e muitos inclusive disseram que Geraldo Pereira aparecera na parceria apenas para divulgar a música, o que acabaria desmentido por Roberto Paiva, cantor que havia lançado a primeira composição de Geraldo Pereira que afirmou não ser esse o perfil do compositor. O mesmo Geraldo Pereira foi autor de outro samba clássico, “Na subida do morro”, que por muito tempo foi apresentado como sendo de Moreira da Silva, que na verdade o comprou do verdadeiro autor por um conto e trezentos mil réis, e posteriormente levou à público a verdade. Coisa que, aliás, infelizmente não aconteceu com muitas das composições compradas e apresentadas por outros que não os seus verdadeiros autores.
Outro autor que teve seu nome ligado à parcerias eventuais criadas para divulgação de músicas foi Raul Sampaio, ex integrante do Trio de Ouro, letrista e musicista de grande qualidade que por questões de divulgação comercial de suas obras acabou entrando em parcerias com nomes como Dantas Ruas e Rubens Silva, que apenas trataram da divulgação das obras, sem nada terem composto, e da mesma forma, foram suas parcerias com Ivo Santos e Benil Santos, que na verdade eram parceiros comerciais e não musicais, embora o segundo até tenha feito uma ou outra obra musical dentre as várias assinadas pelos dois. Assim, obras clássicas da música popular brasileira como “Lembranças”, “Quem eu quero não me quer” e “Estou pensando em ti” constam na História da Música Popular Brasileira não como o nome de seu único autor, Raul Sampaio, mas sim, como tendo sido feitas em parcerias.  
Certamente essas compras e vendas de parcerias criaram nomes de compositores que nunca o foram, o que nos coloca diante de evidentes distorções algumas das quais, infelizmente, nunca serão resolvidas.
Esses tipos de parcerias, assim como a venda de músicas, eram uma espécie de exigência de uma época que ainda engatinhava no que tange a direitos autorais e onde os autores não estavam totalmente cientes do valor de suas criações, num mercado ainda em desenvolvimento, no qual os dividendos econômicos, de maneira geral, não eram muito extensos, num processo, de certa forma, semelhante ao que acontecia no universo do futebol, onde os ganhos, de maneira geral, também não eram muitos. As primeiras sociedades arrecadadoras e protetoras dos direitos autorais somente começaram a surgir no Brasil em meados da década de 1940, como a SBACEM, fundada em 1946.
Além disso, havia o imperativo da divulgação da música, processo que ia desde o momento de apresentar a composição a um cantor ou cantora, e prosseguia na divulgação da gravação nos diferentes programas de Rádio.
De qualquer forma, a existência de comprositores, aqueles que compravam sua entrada em parcerias musicais e aqueles compositores que vendiam a parceria, ou que simplesmente abriam mão de toda a obra musical, era, relativamente, grande, num meio onde a profissionalização ainda estava em constituição e onde as figuras do empresário e a do produtor apenas começavam a serem delineadas.
É evidente que a presença dos “comprositores” acarreta um sério problema para os historiadores da música popular brasileira, uma vez que essa História vem sendo feita, basicamente, através de documentos escritos, como é o caso dos discos, das partituras, das edições, e das reportagens de jornais e revistas, e um ou outro programa radiofônico gravado, onde, naturalmente, por se tratar de programa de Rádio, determinadas questões são deixadas de lado. São poucos os depoimentos de figuras de nossa música, em especial de seus primórdios até os anos 1950, que possam servir para elucidar questões melindrosas.
Dessa forma, já ficaram consagradas versões e, em especial, autorias das quais nada mais se poderá modificar, por falta absoluta de documentação que comprove algo em contrário. Os cantores e as cantoras como deixaram suas vozes impressas nas gravações não padecem dessa dificuldade, pois o máximo que poderá vir a atrapalhar uma avaliação futura é a perda inexorável de gravações ou a baixa qualidade técnica das mesmas. Mas a voz está ali, com o nome do artista no selo do disco e não dá pra mudar ou especular, já o compositor não. Para estes a parceria expressa no selo dos discos é vista, quase sempre, como a verdade final, mesmo que esta não passe apenas de um mero acordo comercial. Torna-se, portanto, imperativo algumas reavaliações que possam colocar certas questões no seu devido lugar dando aos verdadeiros autores a glória que lhes cabe.
Paulo Luna
Enviado por Paulo Luna em 08/10/2008


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